Índice
Introdução
A dêixis é responsável por definir a localização no espaço e no tempo do locutor em seu ato de enunciação. Sendo assim, ela é representada na língua pelas referências eu ou tu, aqui e agora[1].
Tendo, assim, como referências, o eu e o tu, ela é um conjunto de referências que delimita e firma uma relação entre um eu e um tu na pressuposição de existência do outro. O outro enquanto tu estabelece o corte necessário para a existência do eu. Através dos títulos linguísticos exibidos no primeiro parágrafo, é possível apontar, mas sempre para alguém. Mesmo em pleno isolamento, o apontar que é produto da dêixis só acontece quando o eu consegue abstrair um tu, mesmo que concretamente em si mesmo através da reflexão[2].
Para Dominique Maingueneau, “o que chamamos de dêixis discursivo possui a mesma função, mas manifesta-se em um nível diferente: o do universo de sentido que uma formação discursiva constrói através de sua enunciação”[3]. Sendo assim, o objetivo do presente artigo é expor a noção de dêixis discursiva contida no livro Novas Tendências em análise do discurso.
A formação discursiva enuncia
Os sujeitos falam. A formação discursiva enuncia através dos sujeitos que falam, entretanto, não se fala de qualquer maneira, a qualquer momento e muito menos se fala qualquer coisa. É justamente a formação discursiva, esclarece Michel Pêcheux, que consegue entregar as regularidades específicas para se ter a própria possibilidade de se dizer e, acima de tudo, o dever consciente e imperioso ou ingênuo e natural de dizer (ou seja, mesmo quando se considera, devido aos esquecimentos constitutivos do sujeito, que o dito foi produzido por espontânea vontade)[4].
Dominique Maingueneau, ao considerar o “caráter essencialmente dialógico de todo enunciado do discurso”[5], extrapola uma noção inicialmente unifocal para uma realidade plurifocal. Ou seja, a formação discursiva que seria suporte focado num dizer temático específico passa a ser considerada sob a lente da plurifocalidade, sendo assim, a partir da primazia do interdiscurso e da possibilidade da própria formação discursiva ser suporte da heterogeneidade constitutiva do discurso – o mesmo e o outro interligados de maneira indissociável numa aporia. Desta forma,
essa imbricação do Mesmo e do Outro retira à coerência semântica das formações discursivas todo caráter de “essência”, cuja inscrição na história seria acessória; não é dela que a formação discursiva retira o princípio de sua unidade, mas de um conflito regulado.[6]
O autor pontua que a formação discursiva, ao delimitar o dizível, também atribui ao Outro – que “representa a intervenção de um conjunto textual historicamente definível”[7] – a zona do interdito. O dito, na raridade do aparecimento dos enunciados concretos, exclui todo o não dito de sua possibilidade. O Outro enquanto um tu virtual, mas um tu enquanto um eu que deve ser constantemente dissociado. Do ponto de vista da polissemia do enunciado, é possível dizer que cada enunciado de uma formação discursiva rejeita um enunciado não dito e, portanto, a decifração de seu sentido se dá por um direito (relacionando-o com a formação discursiva, com o mesmo) e por um avesso (relacionando-o com seu avesso rejeitado, com o outro enunciado). Dizer que a democracia liberal é o sistema político ideal tem relação direta com a formação discursiva política contemporânea e, ao mesmo tempo, rejeita todas as outras formas de governo possíveis de serem encontradas em formações discursivas diversas.
Desta forma, de maneira introdutória, entende-se que a formação discursiva enuncia, assim como rejeita enunciados, através de sujeitos que falam (ou escrevem, ou cantam, ou desenham). A própria delimitação entre eu e Outro e entre eu e tu são construídas durante a enunciação, na produção do discurso.
A dêixis
O esquema triangular primeiramente explicitado no início do presente artigo através do títulos linguísticos eu-tu, aqui e agora não correspondem exatamente às diferentes funções da dêixis discursiva. Maingueneau distingue quatro formas de aparecimento desta dêixis. Podemos observá-las a partir do seguinte excerto proferido por Luis Inácio Lula da Silva no dia de sua posse presidencial em 2003:
O Brasil é um País imenso, um continente de alta complexidade humana, ecológica e social, com quase 175 milhões de habitantes. Não podemos deixá-lo seguir à deriva, ao sabor dos ventos, carente de um verdadeiro projeto de desenvolvimento nacional e de um planejamento de fato estratégico. Se queremos transformá-lo, a fim de vivermos em uma Nação em que todos possam andar de cabeça erguida, teremos de exercer quotidianamente duas virtudes: a paciência e a perseverança.[8]
- O locutor: o presidente da nação, novo responsável por um projeto de desenvolvimento nacional.
- O destinatário discursivo: o povo que lhe elegeu.
- A cronografia: o momento de ascensão do primeiro presidente ex-operário após dois mandatos liberais fortemente avesso a pautas trabalhistas.
- A topografia: o Brasil.
Apesar da demarcação de elementos discursivos e dêiticos, a formação discursiva não enuncia através do isolamento de elementos históricos, temporais ou a partir de um sujeito, “mas por atribuir-se a cena que sua enunciação ao mesmo tempo produz e pressupõe para se legitimar”[9].
Os elementos da dêixis discursiva permitem ter um primeiro acesso à formação discursiva. Para um acesso profundo, é necessário buscar o que Maingueneau designa como dêixis fundadora. “Esta deve ser entendida como a(s) situação(ões) de enunciação anterior(es) que a dêixis atual utiliza para a repetição e da qual retira boa parte de sua legitimidade”[10]. Para ela, encontram-se uma locução fundadora, uma cronografia e topografia fundadoras que são distinguidas por Maingueneau a partir do exemplo jansenista: “O discurso jansenista, por exemplo, supõe uma dêixis discursiva referente a corrupção que o humanismo pagão da Renascença impôs a Igreja, enquanto sua dêixis fundadora é a Igreja dos primeiros tempos”[11].
Dêixis fundadora valida o que a formação discursiva enuncia enquanto a dêixis discursiva aproxima o dizer à cenografia da formação discursiva – que é-será validada.
Considerações finais
Entende-se que a dêixis discursiva é marcada por quatro formas de aparecimento: 1) o locutor, 2) o destinatário discursivo, 3) uma cronologia e 4) uma topografia, que são contrapartida do eu, tu, agora e aqui da dêixis linguística. A identificação da dêixis discursiva é uma maneira de se aproximar da cenografia de uma formação discursiva. Toda dêixis discursiva se refere a uma dêixis fundadora que lhe dá validade, que fornece a validade ao próprio funcionamento da formação discursiva, que não se refere somente a sua própria dêixis discursiva, mas penetra diversas outras – daí a necessidade de uma noção fundadora de dêixis[12].
Referências
[1] MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 3ª ed. Campinas, SP: Pontes: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1997, p. 41.
[2] BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem IN Problemas de linguística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães et al; revisão técnica de Eduardo Guimarães. Campinas SP: Pontes, 1974, p. 287.
[3] MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso… p. 41.
[4] SIQUEIRA, Vinicius. Formação discursiva e interdiscurso – Michel Pêcheux. Colunas Tortas, 2017. Acesso em 21 jul 2022. Disponível em <<https://colunastortas.com.br/formacao-discursiva-e-interdiscurso-michel-pecheux/>>.
[5] MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. Tradução Sírio Possenti – São Paulo: Parábola Editorial, 2008, p. 37.
[6] Idem.
[7] MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos… p. 38.
[8] DA SILVA, Luís Inácio. Discurso na Sessão de Posse, no Congresso Nacional. IN Brasil, Presidente (2003 – : Lula). Discursos selecionados do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. – Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2008.
[9] MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso… p. 42.
[10] Idem.
[11] Idem.
[12] BORGES, Maria Virgínia. A dêixis discursiva: formas de representação do sujeito, do tempo e do espaço no discurso. Revista do GELNE. Vol. 2, Número 2, 2000.
Instagram: @viniciussiqueiract
Vinicius Siqueira de Lima é mestre e doutorando pelo PPG em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudos sobre a necropolítica e Achille Mbembe.
Autor dos e-books:
Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.